Ruilhe

História da Freguesia de Ruílhe


Encontra-se a cerca de 10 km do concelho de Braga, na margem esquerda do rio Este.



A instituição da paróquia é anterior ao século XIII, uma vez que nos inícios desses séculos aparece como uma das freguesias inicias do julgado ou terra medieval do Penafiel “de juxta Bastuzo” (isto é, Penafiel de Bastuço).



A própria toponímia indica a antiguidade do seu povoamento, já referenciado na época da romanização. Talvez se relacionem com esta antiguidade os topónimos Arentim, evidente genitivo medieval, significando eventualmente a “villa”: silva, talvez de silvana, “villa” de silvanus; Bagoim; Noverci (séc. XVIII), etc, topónimos de origem germânica também não faltam, estando entre eles o principal, Ruílhe (em 1220, Ruilli, em 1258 Royli) que corresponde ao genitivo do nome pessoal hipotético Rodellus, “que tomou o lugar de um nome hipocorístico Rodila” (segundo J. Piel), aludindo pois, a uma Rodilli “villa” ou semelhante.



Nesta freguesia foi construída a Igreja de S. Paio, cuja invocação não será anterior ao século X. Outro antigo genitivo toponímico desta freguesia é Tidim“villa”, talvez também de um bárbaro germânico ou conquistador neo-gótico.

A situação da população desta freguesia, nos princípios do séc. XIII, era ainda de pouca expressão. Havia aqui doze casais enviados pela coroa, em 1220. As condições destes colonos reguengueiros eram, pois, muito duras e pesadas. Silvã é tratada então de “villa”, aludindo-se a um palácio que existira neste lugar para pousa do rei, conforme os inquéritos de 1220.

A igreja local era então da coroa. Em 1290, esta freguesia era toda de Afonso Rodrigues, fidalgo a quem o rei a havia dado em troca.

Fonte:Alfacreative

Alfredo Pimenta

Há uma velha tradição vimaranense, que envolve as freguesias de S. Miguel de Cunha e S. Paio de Ruilhe, actualmente pertencentes ao concelho de Braga, que tem gerado alguma discussão, por se situar algures entre a história e o mito. As dúvidas que persistem em relação a esta tradição não dizem respeito à sua existência, que está demonstrada, mas quanto à sua origem, que carece de ser esclarecida.

A tradição, que se cumpriu até ao ano de 1743, conta-se assim:

Durante séculos, três moradores daquelas freguesias (dois de Cunha e um de Ruilhe) vinham, sete vezes no ano, varrer a praça, o terreiro e o açougue de Guimarães. Esta era uma servidão a que todos os homens daquelas freguesias estavam obrigados, enquanto lá residissem, sendo cumprida rotativamente entre eles. Acontecia nas vésperas das sete festas do ano: Páscoa, Espírito Santo, Corpo de Deus, São João, Santa Isabel, Domingo do Advento e Nossa Senhora de Agosto. Aqueles a quem calhava em sorte o cumprimento desta servidão dirigiam-se à Câmara, onde eram forçados a envergar o trajo próprio da função: ali lhes davam uma opa vermelha ou barrete da mesma cor, de que caía uma ponta até ao talabarte, e a espada levavam e a metiam em um cinto armado à esquerda e os faziam descalçar um pé ficando com o outro calçado pondo-lhe ao cinto o sapato e meia que tinham descalçado. Como ferramenta, cada um levava sua vassoura de giestas. As ruas eram varridas sob a vigilância permanente de um guarda nomeado para o efeito, no meio da algazarra de grupos de rapazes que escarneciam dos varredores forçados. Cumprida a humilhação pública, os três penitentes devolviam à Câmara o barrete e restantes adereços que foram forçados a utilizar, dando-se por cumprido o tributo.
A propósito da origem da servidão dos moradores de Cunha e de Ruilhe, corre em Guimarães, há vários séculos (já corria no início do século XVIII), uma tradição que o insuspeito historiador Alfredo Pimenta classificou como história da carochinha. Aqui fica, como o Padre António José Ferreira Caldas a descreveu em finais do século XIX:

"Uma das mais notáveis e curiosas honrarias concedidas a esta vila foi, sem dúvida, a que lhe dera D. João I, depois da tomada de Ceuta.

Para a defesa desta praça em África, dividiu el-rei as estâncias da muralha, pelos moradores das cidades e vilas, que o acompanharam nesta empresa: acontecendo ficar a gente de Guimarães e Barcelos em estâncias seguidas, onde o combate com os mouros foi mais cruel e renhido.

Atemorizados os barcelenses pelo furor mauritano, desamparam o seu posto e fogem; mas logo os filhos de Guimarães, com o peito abrasado no amor da pátria, se dividem em dois terços, ocupando com um deles a estância abandonada, e defendendo-a até à vitória com inexcedível coragem.

Para castigar a fragilidade de uns, premiando ao mesmo tempo a heroicidade dos outros, mandou D. João I, que de então para sempre dois vereadores de Barcelos, com um barrete vermelho na cabeça, banda ao ombro da mesma cor, espada à cinta, vassoura de giesta em punho, e com um pé calçado e outro descalço, viessem em todas as vésperas das festas da câmara varrer as praças e os açougues de Guimarães; entregando depois o barrete e a banda aos nossos vereadores, dando-lhes assim satisfação de tão tributo, que pagaram a esta vila por muitos anos.

Não havendo já em Barcelos quem se prestasse a servir de câmara, fez o duque de Bragança D. Jaime com a câmara e povo de Guimarães, um contrato solene, pelo qual ficou obrigado a dar do termo da vila de Barcelos, de que era senhor, as freguesias de Cunha e Ruilhe, para que estas - anexadas ao termo de Guimarães - dessem todos os anos dois homens, que viessem aqui satisfazer tão pesado encargo."

A tradição do tributo da vassoura a que estavam obrigados os moradores de Cunha e Ruilhe é contada com algumas variantes. Segundo uma delas, seriam nove, e não sete vezes ao ano que os vereadores de Barcelos e, depois, aqueles a quem a obrigação foi transmitida, viriam varrer as ruas de Guimarães. De acordo com outra versão, os vereadores-varredores seriam dois, de cada vez, e não três. Por um lado, terá sido D. Afonso, bastardo do rei D. João I e primeiro Duque de Bragança (1442-1461), o responsável pela transferência da obrigação vexatória dos vereadores de Barcelos para os vizinhos das freguesias de Cunha e Ruilhe que, para o efeito, foram transferidas para o Concelho de Guimarães; por outro, terá sido o quarto duque, D. Jaime (1500-1532).

Uma outra variante indica que a transferência não terá sido efectuada directamente da vila de Barcelos para aquelas duas freguesias, tendo sido a servidão transmitida, em primeiro lugar, à freguesia barcelense de Santa Eugénia do Rio Covo, sendo depois transferida para Cunha e Ruilhe. Uma passagem da Corografia Portugueza do Padre Carvalho da Costa diz algo diferente, quando trata da freguesia de Santa Eugénia:


"Dizem foi antigamente couto de Guimarães e por castigo, e privilégio que tinham eram os moradores obrigados a ir-lhe varrer as ruas; mas sendo mui prejudicial a Barcelos haver aqui este couto tão seu vizinho, em que acolhiam seus criminosos, donde saíam a roubá-los, lhes deram em troca as duas freguesias de Cunha e Ruilhe com a mesma obrigação".



Esta citação da obra de Carvalho da Costa contribuirá, como veremos, para a compreensão desta tradição.


Uma das referências que costumam ser citadas para dar crédito à tradição da servidão de Barcelos e ao papel que o Duque D. Jaime terá tido para a relevar, é o seguinte excerto do


 

Tratado Histórico, Catálogo dos Priores do Real Mosteiro da Costa (Guimarães)


CAP. IV

Vida do Duque D. Jaime

[…]

Aos moradores da sua Vila de Barcelos livrou da injuriosa servidão de virem dois vereadores da mesma Vila em certas festividades do ano varrer a Praça e Açougues da Vila de Guimarães, para o que fez tirar do termo da Vila de Barcelos as freguesias de Cunha e Ruilhe, que se uniram ao termo de Guimarães com o encargo daquela servidão.

[…]


A tradição que associa a servidão da vassoura, a que estavam obrigados os moradores de Cunha e de Ruilhe, ao comportamento da hoste de Barcelos na tomada de Ceuta, carece de base histórica (até porque, tanto quanto é possível saber-se, na conquista daquela praça marroquina não participou qualquer hoste de Barcelos…). Todavia, esta tradição tem já vários séculos de caminho. Se Alfredo Pimenta a classificou como um história da carochinha, em tempos recentes, no final do século XX, foi-lhe acrescentada uma nota suplementar de fantasia, numa tentativa, algo ingénua, de expurgar a carga pejorativa da tradição das duas caras que anda associada à estátua do Guimarães, que hoje podemos ver a encimar a fachada voltada para a praça da Oliveira dos antigos Paços do Concelho. Segundo essa versão, as duas caras seriam, nem mais nem menos, as duas frentes de batalha que os de Guimarães teriam tido que sustentar na conquista de Ceuta - a que lhes cabia e aquela de que os de Barcelos teriam desertado. É fácil de demonstrar, como já se fez antes, que esta história não tem qualquer sustentabilidade.



Pela parte que me toca, fantasia por fantasia, acho bem mais interessante esta versão da lenda das duas caras.


A servidão da vassoura a que estavam obrigados os moradores de Cunha e de Ruilhe é um facto histórico, demonstrado por diversos documentos, como por exemplo o Tombo de 1735, no qual são descritos os bens pertencentes ao Senado da Câmara de Guimarães. Entre eles, estavam os barretes e as faixas com que eram investidos os varredores que vinham cumprir a penitência:


 

Barretes de Cunha e Ruilhe — Tem mais o Senado que se guarda na casa dele três barretes de rabo comprido feitos à mourisca e três faixas tudo de baeta vermelha com que os moradores das duas freguesias de S. Miguel de Cunha e de São Paio de Ruilhe cada uns no seu giro se preparam e compõem quando vêm varrer a praça e terreiro de Nossa Senhora da Oliveira e açougues desta vila nas festas da Câmara cuja varredura fazem nos próprios dias das mesmas festas pela manhã com um pé descalço e o outro calçado e a espada metida na faixa que cada um ata pela sua cinta às avessas pela parte esquerda e o barrete metido na cabeça com o rabo estendido pelas costas abaixo, e nesta forma é que varrem.


Quanto à relação da servidão da vassoura com feitos e mal feitos de Guimarães e Barcelos aquando da conquista de Ceuta, não faltam referências nos textos que tratam da história de Guimarães. Assim sucedeu com João de Meira, que, numa conferência que ficaria inédita aquando do seu falecimento, alude ao assunto com expressões de dúvida (parece, diz a lenda):



"Na tomada de Ceuta o concelho parece ter-se representado gloriosamente. O contingente de Guimarães, diz a lenda, combatendo ao lado das tropas de Barcelos no assalto da praça, atacou com valentia o lugar que lhe coube em sorte, e ainda acudiu esforçadamente ao lanço que os barcelenses abandonaram, ganhando por esse feito o privilégio de as ruas da vila serem varridas na véspera de certas solenidades pelos vereadores de Barcelos num traje vexatório e grotesco."

Alfredo Pimenta, historiador que dá o nome ao Arquivo Municipal de Guimarães, de que foi o primeiro director, e que foi Director do Arquivo Nacional da Torre do Tombo até à data do seu falecimento, no ano de 1950, manifestou, em 1940, profundas reservas à tradição que associava a conquista de Ceuta quanto à tradição da servidão a que estiveram obrigados os moradores de Cunha e Ruilhe:

 
"A propósito de Ceuta, corre nos monógrafos, e o próprio João de Meira lhe deu crédito, uma história que nos parece história da carochinha.

(…)

Nem o cronista da tomada de Ceuta narra a falência da bravura dos homens de Barcelos, nem ninguém viu a Sentença de D. João I.

Mas a servidão existia — isso é inegável. O que se ignora é a sua origem verdadeira.

Nem se entende que sendo ela destinada a castigar a fraqueza ou a cobardia dos barcelenses, o Duque D. Jaime pudesse encabeçá-la em duas freguesias que alienou, e passou para o termo de Guimarães, dando essa transferência em resultado ficarem os de Barcelos isentos da pena, e os de Guimarães com ela às costas; porque as freguesias de S. Miguel de Cunha e de S. Paio de Ruilhe, sendo barcelenses até o dia da transacção, passaram a ser vimaranenses, depois dela. Em qualquer caso, o que devia ser suportado pelos moradores de Barcelos, ou seus vereadores, passou a sê-lo pelos fregueses de Ruilhe e de Cunha, — não enquanto barcelenses, mas depois de entrarem no termo de Guimarães.

Acresce ainda, e não é pouco, que desconheço a data da incorporação das duas freguesias de S. Miguel de Cunha e de S. Paio de Ruilhe no termo de Barcelos — para que o Duque D. Jaime possa separá-las dele.

Porque muito bem as conheci como fazendo parte do termo de Guimarães, anteriormente.

Efectivamente na Inquirição que se tirou sobre as honrras e devassos dos julgados de Guimarãis... e suas freguesias quintaans e casões, por ordem de D. Diniz, em 13 de Julho de 1288, vejo as freguesias de S. Miguel de Cunha e S. Paio de Ruilhe. (Vim. Mon. Hist., pág. 351 e 358).

Embora não seja insólito o alargamento e encurtamento dos termos, convinha conhecer-se quando foi que as duas freguesias, hoje incorporadas no concelho de Braga, entraram no termo de Barcelos.

Em conclusão: até melhor prova de que o diz-se e o «se acaso havia» apontados na Provisão de D. João V, deixo sob reserva a tal história de Ceuta como origem da servidão falada."

Para esclarecermos as dúvidas acerca da servidão da vassoura a que estavam condenados os moradores de Cunha e de Ruilhe e a sua suposta relação com Barcelos e a conquista de Ceuta, teremos que reler os documentos. Nas inquirições gerais de D. Dinis, iniciadas no ano de 1288, no capítulo da "inquiriçom que se tirou sobre as honrras e deuassos dos julgados de guimarãees [e Freitas] e suas freguisias quintaans e casaes", encontramos descritas aquelas duas freguesias:


 

S. Miguel de Cunha 

"Item freguesia de sam migell de cuia dizem as testemunhas que a meyadade de toda a villa e del Rey Reguenga e a meyadade he de ffilhos dalgo e de moesteiros e de Igrejas a que as mandarom os filhos dalguo – em esta meyadade dos filhos dalgo som quatro quimtaams que som de filhos e netos de lourenço ffernamdez e virom nas honrradas desque se acordam as testemunhas e per Razam destas quintaams trazem por honrra toda a villa assy ho Reguengo del Rey como todo ho all que nom emtra hy moordomo do carritell nem peita voz nem coyma saluo que entra hy o moordomo do pam polas teigas. — Estee como estaa –"


 

S. Paio de Ruilhe 

"Item fregueja de sam payo de Roilhe nom ha hy honrra nem huuma outra e he toda daffonsso Rodriguez ca lho deu el Rey em escambho – Estee como estaa–"


[Guimarães, João Gomes de Oliveira, Vimaranis Monumenta Historica, pp. p. 347351 e 358]


 
Ou seja: Cunha e Ruilhe, que, em 1220, como informa o Abade de Tagilde, pertenciam ao Julgado de Penafiel (Terra de Penafiel de Bastuço, que hoje pertence ao concelho de Barcelos, em zona limítrofe de Cunha e Ruilhe, actualmente integradas no concelho de Braga), no final do século XIII já faziam parte do termo do concelho de Guimarães. A conquista de Ceuta apenas acontecerá mais de um século mais tarde, em 1415. 


A referência mais antiga à servidão da vassoura que conhecemos foi escrita em 1512 por Mestre António, cirurgião de Guimarães, no seu Tratado sobre a província de Entre-Douro-e-Minho e suas abundâncias, que permaneceu inédito durante mais de quatro séculos:



"E assim os desta comarca andaram vinte  e tantos anos nas guerras de Castela pelos quais serviços lhe deram muitos privilégios estremadamente à vila de Guimarães que lhe deram o título de mui nobre e sempre leal, e o castelo castelo de Guimarães nunca se acha ser tomado de mouros, os que fugiam das guerras de outras partes foram ajuntados em certos lugares como degredados e foram dados como tributários à dita vila de Guimarães para sempre como hoje em dia as de Cunha e Ruilhe, que são daqueles vêm cada ano varrer açougues e praças e ruas da vila de Guimarães e para outras quaisquer coisas que os mandem chamar, posto que vivem quatro léguas de Guimarães e não são do seu termo e assim eram os de Fão e Esposende se não o duque Dom Afonso que Deus tem por muitos serviços que lhe fizeram os tirou da dita sujeição e os deu a Barcelos por termo por que viviam mais perto dele e todos os privilégios principais que depois foram outorgados pelos reis a Lisboa e aos outros lugares do reino dessem eles assim que pela maneira que os termos outorgados a nossa mui nobre e sempre leal vila de Guimarães."



[Luciano Ribeiro,  "Uma descrição de Entre Douro e Minho por Mestre António", Boletim Cultural da Câmara Municipal do Porto, vol. 23, fasc. 3-4, Porto, 1959, p. 459.]





Note-se que Mestre António não faz qualquer referência à transmissão de Barcelos para Guimarães das freguesias de Cunha e Ruilhe, com a obrigação de os seus moradores assumirem a servidão vexatória a que estariam sujeitos os moradores ou, conforme as versões, os vereadores barcelenses.  Por outro lado, indica que Fão e Esposende teriam idêntica sujeição, tendo sido passadas pelo primeiro Duque de Bragança, D. João, do concelho de Guimarães para o de Barcelos, por ficarem "mais perto dele".  Mestre António é claro quanto à origem desta costumeira: aquelas freguesias eram lugares onde os desertores de guerras foram degredados e "dados como tributários à dita vila de Guimarães", não fazendo qualquer referência a Ceuta. Por outro lado, com base neste documento,  podemos concluir pela falta de consistência da tradição de que teria sido o Duque D. Jaime a entregar a Guimarães as freguesias de Cunha e Ruilhe, para libertar os de Barcelos da servidão a que estariam sujeitos. A existir, Mestre António não a poderia ignorar: escrevendo o seu Tratado em 1512, teria sido contemporâneo da suposta transferência, uma vez que D. Jaime apenas chegou a Duque de Bragança no ano de 1500. Por outro lado, note-se  que, havendo uma versão desta tradição que diz que foi o Duque D. Afonso o responsável pela transferência daquelas freguesias de Barcelos para Guimarães, na obra de Mestre António apensas se encontra notícia do movimento em sentido contrário das freguesia de Fão e Esposende.



O documento mais antigo em que se encontra referência a Ceuta e a Barcelos na origem da servidão da vassoura a que estavam sujeitos os moradores das freguesias de Cunha e de Ruilhe são as Memórias Ressuscitadas da Antiga Guimarães, escritas entre finais do século XVII e os primeiros anos do século XVIII, mas que ficaram inéditas até 1845. Apesar de inéditas, as Memórias do Padre Torcato foram lidas por vários autores, que as utilizaram sem citar a fonte. O exemplo mais acabado dos plágios de que foi alvo encontrámo-lo da Corografia do Padre Carvalho da Costa, onde foram vertidos largos trechos da obra do monógrafo vimaranense. Assim sucede, por exemplo, com o texto que se segue, onde surgem algumas novidades a propósito da suposta servidão de Barcelos a Guimarães:

 
"Para coroa de todos os privilégios desta vila, farei menção de uma Provisão de el-rei D. João o 1.°, à qual em nenhuma parte há outra semelhante. Quando este senhor tomou a cidade de Ceuta em 1414*, repartiu as estâncias das muralhas pelos moradores das cidades, e vilas que o acompanharam nesta empresa: sentidos os Mouros da perda de sua cidade, se juntaram em grande número, e vieram logo sobre ela, e fizeram o maior ataque pela estância que guardava a gente de Barcelos: ficaram estes tão assustados, que fugiram, desamparando aos Mouros o lugar que lhe estava balizado. Os moradores de Guimarães, que guardavam a estância contígua se dividiram logo em dois terços, e com um foram lançar fora os Muros do muro que já ocupavam, e com o outro ficaram defendendo o lugar que se lhe tinha nomeado.

 
Agradeceu el-rei esta valorosa acção com lhes passar uma Provisão em 1517**, para que os moradores da vila de Barcelos viessem nas vésperas de todas as festas que a câmara desta vila costuma celebrar, varrer-lhe a Praça Maior, Padrão, e Açougues, com um barrete vermelho na cabeça, e uma banda ao ombro, da mesma cor, e a espada à cinta, e um pé calçado, e outro descalço, com vassouras de giesta que traziam de suas casas, para fazerem esta limpeza. Acabada ela, entravam na câmara, aonde os esperavam os ministros, e em livro particular lhes faziam seus registos, e se faltava algum sem mandar certidão de causa justa, era condenado em seis mil reis para os encargos do concelho. Continuaram os moradores de Barcelos nesta servidão mais de sessenta anos, até que não havendo quem a quisesse habitar, veio o duque de Bragança D. Jaime, senhor da dita vila pedir à câmara, e povo desta vila quisessem fazer com ele um contrato, em que lhe largaria as freguesias de Cunhe, e Avinhe*** para que os moradores delas continuassem aquela servidão: porque aquela sua vila se ia despovoando da nobreza que tinha: e como seu requerimento era justo se fez o contrato, que se guarda no cartório da câmara, e assim os moradores das ditas freguesias ainda continuam a limpeza dita do mesmo modo. Bem trabalhou o doutor Gabriel Pereira de Castro para livrar as ditas duas freguesias, por ter nelas certos caseiros que faltaram à servidão, e que haviam sido condenados: saiu a sentença contra os ditos caseiros, a qual se guarda no cartório da câmara."  

[Torcato Peixoto de Azevedo (Padre), Memórias Ressuscitadas da Antiga Guimarães, Porto, Typographia da Revista, 1845, pp. 413-414]

 
* Erro: a conquista de Ceuta aconteceu em 1415.
** Gralha da edição de 1845: deve ler-se 1417.
*** Gralha da edição de 1845: deve ler-se Ruinhe, aliás, Ruilhe.

 
Note-se que o Padre Torcato afirma que teria sido o duque D. Jaime a contratar com a Câmara de Guimarães a transferência de Cunha e Ruilhe de Barcelos para Guimarães, com o encargo de assumirem à sua conta as obrigações da servidão. Como já vimos, Mestre António, que seria necessariamente contemporâneo de tal acontecimento, não se lhe refere.

Fonte: António Amaro das Neves in www.araduca.blogspot.pt

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